Amado Bonpland. Amado Jacques Alexandre Goujaud, mais conhecido pelo nome de Bonpland nasceu a 29 de agosto de 1773 na Rochelle, onde seu pai exercia a profissao de medico. Destinado a substitui-lo, mandarao-no para Paris afim de ahi receber uma instruccao mais completa que a que selhe poderia dar em uma cidade de provincia. Estudou sob a direccao dos mais habeis professores da escola de medicina desta grande capital, e foi um dos discipulos mais distinctos de Dessaut e o amigo intimo de Bichat, tao prematuramente roubado a admiracao e applausos de seus contemporaneos. Foi seu pai que, vendo-o sempre occupando na cultura das plantas do seu jardim, lhe deu este nome. De Ron-Plant fez-se depois Bonpland, que substituiu o seu nome de familia. Um instincto secreto, uma vocacao innata, o levavao nas suas horas de repouso para o jardim do rei, onde elle observava com curiosa intelligencia os thesouros accumulados nesse vasto deposito de produccoes naturaes de todos os climas. A' vista de objectos tao diversos seu espirito parou primeiro indeciso, nao sabendo qual era mais digno de sua attencao. Admirava elle a ordem que reinava, gracas ao genio de Buffon e Daubenton, nas colleccoes geologicas e zoologicas, e essa immensa variedade de organisacao, de forma e de cor que apresentavao de toda a parte as series incompletas mas numerosas dos seres animados e inanimados da creacao. Mas o que o captivou sobretudo foi a reuniao de plantas que a mao habil de Jussieu tinha distribuido em familias, simplificando e aperfeicoando ao mesmo tempo o systema de Lynneu. Este estudo, tao conforme aos gostos de Bonpland, tornou-se entao sua occupacao principal, e se continuou a seguir os cursos da escola de medicina foi unicamente para nao desobedecer as ordens de seu pai, como um acto de resignacao a uma vontade inexoravel. Um acontecimento inesperado veiu tira-lo dessa posicao indecisa. O governo francez, no meio dos hazares do espirito revolucionario que se havia apoderado da Franca e dos exercitos estrangeiros que se preparavao a invadi-la, havia decretado mandar uma expedicao destinada a explorar as colonias hespanholas desde o isthmo de Panama ate ao Rio da Prata. O capitao Baudin, investido do commando dessa expedicao, levava a seu bordo dous naturalistas que deviao executar a parte mais importante da sua missao. Um era o Sr. Michaux, que ja visitara a Persia, e que voltava dos Estados-Unidos, de que descrevera, em uma obra estimada, as principaes produccoes naturaes; o outro, o Sr. Bonpland, que, nao obstante ser tao moco, fora julgado o mais digno de acompanhar o celebre viajante. O Sr. de Humboldt, que estava entao em Paris, pediu e obteve licenca para os acompanhar. Comecou por esse tempo a guerra na Europa; a Inglaterra nella tomou parte com toda a sua forca maritima, e a expedicao nao se fez. Os Srs. Humboldt e Bonpland, unidos ja pelo duplo laco da amizade e da sciencia, virao-se livres de procurar algures outros meios de satisfazer aos desejos que tinhao de visitar alguma parte pouco conhecida ou ainda ignorada do globo. Aceitarao entao o offerecimento que lhes fez o consul da Suecia de embaracarema bordo de uma fragata que lovava ao dey de Argel os ricos presentes que Ihe mandava o rei da sua nacao. Resolverao visitar a immensa cadea que se estende desde as areas do deserto ate o limite das neves eternas que cobrem os mais altos cumes do Atlas, e juntar depois seus trabalhos aquelles dessa grande expedicao que, sob as azas da victoria, explorava os monumentos esquecidos do poder e do genio dos Pharaos. O navio que os levava para Argel teve de tocar em Cadiz para reparar as avarias que soffrera durante a viagem. Esse novo contratempo decidiu-os a ficar na Hespanha, que entretinha entao frequentes relacoes com suas colonias. O isolamento a que a politica desconfiada da metropole as condemnava, ainda nao havia permittido a sciencia penetrar nessas regioes mysteriosas, e as noticias inexactas de alguns viajantes excitavao ainda mais a curiosidade dos sabios. Desta vez as esperancas dos dous naturalistas nao forao illudidas. O Sr. Urquijo, ministro distincto da corte de Madrid, prestou-lhes a mais decidida proteccao; nao so deu-lhes passagem a bordo da corveta Pizarro, como tambem proporcionoulhes cartas e recommendacoes para todas as autoridades das possessoes hespanholas no Novo Mundo. Antes de partirem visitarao os estabelecimentos scientificos de Madrid, travarao relacoes com todos os homens mais notaveis quo por communhao de opinioes ou de estudos lhes inspiravao maiores sympathias. Tiverao longas conferencias com Ortega, escriptor infatigavel e director dos museus reaes; com Ruiz e Pavon, autores da Flora do Peru; com Ne, que acompanhara Haenche na desditosa expedicao de Malaspina; e especialmente com Cavanilles, o Nestor dos botanicos hespanhoes, cujas obras sinda hoje se reputao justamente o que ha de mais importante escripto em Hespanha sobre a sua Flora. Icones et descriptiones plantarum, quae aut sponte in Hispania crescunt aut in hortis hospitantur. Madrid, 1791 a 1799. 6. V. in fol. Hortus regius Matritensis: a morte do autor interrempeu a publicacao. Chegou alfim o momento desejado. Depois de uma feliz viagem puderao pizar esse solo do Novo-Mundo, que tanto vierao a illustrar com seus trabalhos. Quem quizer acompanha-los em suas peregrinacoes, e admirar-lhes as descobertas, basta-lhe consultar suas obras. Quem se atreveria a retocar o grande quadro tracado por estes habeis mestres? Quem poderia erguer-se ale elles para julgar deseu merecimento? Todos os ramos da sciencia, nas suas mais vastas proporcoes, nos seus mais altos mysterios, forao successivamente objecto da applicacao desses infatigaveis viajentes que, entregues a seus proprios recursos, desempenharao a difficil tarefa de examinar e de descrever todas as riquezas occultas ate entao as investigacoes dos sabios. Factos historicos, detalhes de estatistica, ricas colleccoes de geologia, de mineralogia, de zoologia e de botanica, tudo entrou no plano de seus vastos trabalhos, que antes se devem considerar como uma grande encyclopedia, do que com o uma simples descripcao dos logaros que aquelles viajantes percorrerao. Bonpland foi que encarregou-se da parte botanica, na qual era mestre. Qualquer outro teria de certo recuado diante de semelhante tarefa, vendo ante si uma natureza tao rica e tao variada. A maior parte das plantas nao se encontravao, ainda mesmo nos mais completos catalogos. Nao se tratava somente de recolhe-las, cumpria tambem descreve-las e classifica-las, trabalho arido que reclamava a pratica e a sciencia de um observador consumado. Esta parte -- Da viagem pelo interior da America Meridional -- e bastante consideravel. Humboldt e Bonpland, se voltar de Europa, occuparao-se exclusivamente em coordenar o que haviao reunido. E so depois de alguns annos e que puderao comecar a fazer conhecidos do publico o fructo de seus trabalhos. A publicacao dessa obra monumental despertou um sentimiento geral de admiracao nao so nas classes illustradas, porem ainda mesmo entre as pessoas mais estranhas as materias de que ella se occupava; porquanto as investigacoas scientificas elles juntavao a descripcao dos usos e costumes que os povos primitivos desses paizes haviao conservado inalterados desde a conquista. II. Nessa opoca a imperatriz Josephina prodigalisava ouro para tornar Malmaison uma das residencias mais esplendidas da Franca. Bonpland foi encarredago da direccao dos trabalhos do jardim e do parque. Quem com effeito poderia melhor acompanha-lo em tao generosos esforcos? As mais bellas plantas, as mais escolhidas flores, as mais raras arvores, ornavao esses sitios encantadores, onde o genio infatigavel que tinha em suas maos os destinos do mundo ia as vezes saborear alguns momentos de repouso. Bonpland gozou muitas vezes da honra de entreter Napoleao com a narracao de suas viagens; e o prazer a que punha mais preco era iniciara imperatriz nos estudos a que consagrara sua vida. Dotada pela natureza de gosto apurado o de prodigiosa memoria, Joesphina aprendera facilmente a distinguir todas as plantas reunidas nas suas estufas, e a designa-las, nao peloa nomes vulgares, mas pelos que a sciencia lhes tem dado. Para provar a seu mestre quanto se achava adiantada, ella tinha por costume perguntar-lhe com uma graca so propria della:--Sr. Bonpland, como passa a Bonplandia Germiniflora?--E fazia isto nao porque fosse ella a mais linda flor de seus jardins, mas porque essa flor tinha o nome que Cavanille lhe havia dado em honra de Bonpland. Nao era esta a unica prova de estima que lhe dava a imperatriz. Bonpland occupava em sua corte uma posicao distincta. Era um dos administradores de Malmaison e Navarra, dous dos mais ricos dominios da Franca. Nas recepcoes e nas festas magnificas que frequentemente tinhao logar nestas duas residencias, as flores appareciao sempre, e encantavao a todos por sua belleza e variedade. Os que erao admittidos nessas reunioes, depois de terem contemplado as obras dos grandes artistas de todas as escolas e de todas as epocas, depois de terem admirado a riqueza das alfaias e o bom gosto dos ornatos, extasiavao-se a vista de tantas flores, cujos perfumes filtravao n'alma as mais gratas sensacoes. Nestes dias felizes tudo respirava a seduccao e a grandeza que essa mulher predestinada derramava a sociedade mais escolhida da Europa, a quem ella franqueavas as portas de seu palacio. Ai della o ceo em que fulgurava a sua estrella devia em breve cobrir-se de nuvens. O homem a quem Josephina havia dedicado a sua vida quebrou violentamente os lacos que o prendiao a mulher que fora a companheira de suas glorias. Josephina expiou em um so dia todos os favores que a fortuna lhe havia concedido com mao larga, o desceu da sua alta posicao como se voluntariamente a tivesse abdicado. Ouviu sem enrugar a fronte a sentenca que a precipitava do throno; e por um esforco de que so sua alma era capaz, soube conter as lagrimas para occultar sua dor aquelle que lhe vinha annunciar sua desgraca. " Nao e a perda da coroa que me afllige, disse ella nesse mesmo dia a Bonpland, mas e a perda do homem que mais amei na minha vida, e que jamais deixarei de amar em quanto a tiver. " Longos annos se haviao passado depois desta triste scena, e ainda Bonpland repetia estas palavras com os olhos banhados de lagrimas e a voz tremula de commocao. Apos uma longa interrupcao, Napoleao mandou prevenir a imperatriz de que iria visita-la no dia seguinte. A idea de ver ainda uma vez perto de si o homem que, apezar de sua ingratidao, occupava sempre o primeiro logar nas suas affeicoes reviveu-lhe todas as impressoes. O pouco tempo que medeiou entre a noticia e a chegada do imperador foi gasto em dar a esta entrevista o caracter de um memoravel acontecimento. Joesphina fez grandes preparativos para solemnisar a vinda do imperador; ella occupou-se sobretudo em ornar com flores todos os seus aposentos. " Amanha, disse ella a Bonpland, tudo deve respirar alegria e prazer em derredor de nos. Espero o imperador: semeai flores em todos os cantos de minha casa: eu quizera poder faze-las brotar por onde elle pizasse. " Nesse dia, nesse bello dia, ella esqueceu todos os seus pezares, e so viveu de sua felicidade passada. Por uma delicadeza que e facil comprehender, ella recebeu o imperador debaixo do perystillo do seu palacio, e conferenciou com elle na presenca de seus cortezaos. Ella nao ignorava a opposicao que nelles oncontrara Napoleao ao designio de visita-la; e o que realmente havia afastado o imperador de Malmaison nao era indifferenca, porem sim suspeitas de sua nova esposa. Napoleao nao quiz deixar Malmaison sem examinar as ricas colleccoes de plantas que Bonpland reunira em suas magnificas estufas. Elogiou-lhe as disposicoes, admirou suas novas cobertas, e felicitou-o pelos resultados que ate entao obtivera de suas experiencias de aclimatacao Estimulado por estes augustos suffragios, Bonpland emprehendeu e publicou a Descripcao das plantas raras cultivadas em Navarra e Malmaison, uma das obras mais esplendidas que tem sahido dos prelos de Paris, ornada de numerosas estampas, obra dos melhores artistas de Franca. A queda de Napoleao despedacou o coracao de Josephina. Nao havia nada de egoismo nesse sentimento, porquanto sua posicao pessoal nao soffria a influencia desse acontecimento. No meio das revolucoes que se operarao em Franca nos homens, nas cousas, nas opinioes e no governo, os principaes instrumentos desta catastrophe se compraziao em rodear de attencoes o de solicitudes aquella que havia sido em algum tempo a desditosa companheira da victima delles. O imperador da Russia, o rei da Prussia, os mais altos funccionarios da diplomacia o das armas, vierao render-lhe homenagens em seu silencioso retiro de Malmaison. Uma guarda de honra vellava continuamente sobre sua pessoa e sobre seus bens. Ninguem ousaria profana-los; porem o interesse testemunhado pelos invasores da Franca era uma prova eloquente do seu respeito por Josephina. A imperatriz, absorvida em sua dor, podia subtrahir-se a estas visitas officiaes. " O meu logar nao e aqui, dizia ella um dia a Bonpland, que se tinha tornado o confidente dos seus pezares. O imperador esta so e abandonado. En quizera estar a seu lado para ajuda-lo a supportar o seu infortunio. Mas por ventura posso fazelo? . . . Nunca soffri tanto por ter perdido o direito de preencher este dever. Pude resignar-me a viver longe delle emquanto era feliz; hoje, que e desgracado, peza-me, peza-me muito ver-me tao separada. " Approximava-se a hora em que esta separacao devia ser eterna. A imperatriz foi atacada de uma laryngites que tomou em pouco tempo o caracter de uma affeccao cancerosa. Todos os soccorros da arte forao baldados. Ella expirou no dia 29 de maio de 1814, entre seus dous filhos, o principe Eugenio e a rainha Hontencia. O imperador Alexandre, que esteve presente a seus ultimos momentos, confundiu suas lagrimas com as delles. Bonpland foi testemunha desta scena de do que cavou em sua alma um sulco profundo. Chorou, nao a sua fortuna desfeita, mas a morte desta mulher incomparavel, que animava os seus trabalhos com a sua proteccao e com seus suffragios. III. Malmaison perdeu promptamente todo o seu brilho, sua decadencia foi tao rapida, como lenta tinha sido sua creacao. O Sr. Bonpland teve o desgosto de ver morrer o fructo de seus cuidados, o de tao custosos e inapreciaveis sacrificios. A residencia em Franca nao tinha mais encantos para elle; nada podia encher o vacuo que deixarao nelle a morte da imperatriz o a destruicao de sua real morada. Estas recordacoes peniveis fizerao-lhe sentir a necessidade de procurar algum allivo na actividade e no trabalho. Seu espirito voltou-se aquelles tempos longinquos em que elle percorria as ricas provincias da Nova-Hespanha em companhia do seu illustre amigo o Sr. de Humboldt. Pareceu-lhe que restava ainda muito a fazer para cumprir completamente o programma que elle se tinha tracado, sobretudo na parte botanica, que podia receber grandes melhoramentos. A's plantas equinoxiaes que crescem na regioao das palmeiras e nos cumes nevados dos Andes convinha accrescentar as da zona temperada, tao imperfeitamente descripta pelo padre Feuillee, e tao rapidamente observadas por Comerson; o Sr. Rivadavia, que se achava entao em Paris, levou-o a por em execucao este projecto. O Sr. Bonpland embarcou-se em um navio prompto a dar a vela para o Rio da Prata, e chegou a Buenos-Ayres pelos fins de 1816. A situacao do paiz nao era de modo algum propicia a satisfacao deste empenho. A independencia das provincias hespanholas, proclamada com tanto ardor pelo congresso de Tucuman, tinha ainda muitos obstaculos a vencer e poderosos inimigos a combater. Artigas mantinha ainda a anarchia no paiz que tem hoje o nome de Republica Oriental do Uruguay, e esta agitacao se estendia as provincias de Entre-Rios e Corrientes. O dictador Francia reinava despoticamente no Paraguay, completamente fechado ao commercio estrangeiro. San-Martin organisava o exercito que devia levar a liberdade ao Chile; a espada de Bolivar nao tinha ainda assegurado os destinos da Columbia; e o alto e o baixo Peru estavao sob o dominio da Hespanha, cujos exercitos occupavao os pontos principaes destas colonias. Tudo era revolucao e perigo na vasta extensao do continente americano. O Sr. Bonpland, contrariado em seus projectos, aceitou o offerecimento que lhe fez o governo de occupar uma cadeira de medicina na Universidade de Buenos-Ayres; mas o amor por seus estudos predilectos fez-lhe abandonar a cadeira, e elle foi fundar um estabelecimento agricola em uma das antigas missoes do Uruguay, onde achou a tranquillidade no meio da solidao do deserto. Os comecos forao-lhe muito peniveis; mas tinha ja chegado a vencer as difficuldades que acompanhao sempre as emprezas desta natureza, quando o espirito suspeitoso do dictador Francia assustou-se com os progressos de seu estabelecimento. Apezar de se achar este fundado em uma provincia limitrophe, e separada do Paraguay por um grande rio, o dictador resolveu destrui-lo. Um dia em que o Sr. Bonpland repousava, foi accordado pelos gritos de seus trabalhadores, que uma forca enorme de Paraguayos viera sorprender. Precipitou-se para a porta, e, a vista daquella gente desconhecida, tomou uma arma para oppor-se ao que elle julgava, e que era realmente, uma aggressao. No primeiro encontro recebeu na cabeca uma cutilada, que o poz na impossibilidade de defender-se. Levarao-no amarrado como um malfeitor para as embarcacoes que haviao servido as tropas do dictador para a traversia do Parana, e foi conduzido com uma forte escolta a Ytapua. Deste ponto transportarao-no para um outro mais retirado, prohibindose lhe afastar-se a mais de uma legua de sua habitacao. Seu estabelecimento foi completamente arruinado; nada ficou de tudo que elle havia feito. Privado de sua liberdade, ferido em seus interesses, condemnado ao silencio e ao isolamento, o. Sr. Bonpland achou no seu stoicismo consolacoes e mesmo motivos para zombar dos caprichos da fortuna, comparando os dias que elle passara na corte da imperatriz Josephina com sua posicao actual sob a dependencia de um obscuro tyranno do Paraguay. Resignado a sua sorte, comecou a observar as produccoes naturaes do canto de terra que lhe era dado habitar. Deixaremos que elle proprio conte as occupacoes que o ajudarao a passar, sem muitos vexames, os nove annos de seu captiveiro. " Estabeleci tambem uma fabrica de aguardente e de licores, uma officina decarpinteiro e uma serraria que nao so me dava para a necessidade de meu estabelecimento, mas deixava-me ainda alguns lucros nos trabalhos que se me encommendavao. " Adquiri assim uma posicao remediada. " A 12 de maio de 1829 o delegado de Santiago me intimou ordem do director supremo de sahir do Paraguay, etc. " IV. A liberdade do Sr. Bonpland excitou na Europa um enthusiasmo universal. As circumstancias de seu captiveiro, o logar de seu exilio, a pessoa de seu agressor, tudo contribuia para dar a sua reapparicao o caracter de uma visao phantastica. Ter vivido sob a dependencia de Francia, ter passado tantos annos em um paiz impenetravel com o Paraguay, poder fallar de seus productos, de seus habitantes, de seus custumes, de seu governo, erao titulos proprios de despertar a curiosidade publica. Luiz Felippe, que acabava de subir ao throno, dou a seus agentes e ao chefe da estacao naval franceza no Rio da Prata ordem de fornecer ao Sr. Bonpland tudo que fosse necessario para sua volta a patria; e o Sr. de Humboldt foi annunciar ao Instituto de Franca a proxima chegada de seu amigo e companheiro como um acontecimento com o qual se deviao regozijar todos os amigos da sciencia. Estes lisongeiros testemunhos de estima, esta homenagem espontanea da porcao mais instruida e mais distincta da Europa, e o desejo tao natural a todo o homem de voltar ao seio de sua familia para esquecer ali infortunios passados, nao puederao decidir o Sr. Bonpland a trocar o habito de sua vida tranquilla pelos deveres e agitacoes da vida que o esperava. Elle teria seguramente encontrado em Paris recordacoes, distinccoes, prazeres; os admiradores e as lisonjas lhe nao teriao faltado; mas a preco de quantos trabalhos havia de comprar estes prazeres? Um dia, em que elle nos fallava com expansao do seu designio de nunca mais afastar-se destes logares, dizia-nos: " Acostumado a viver a sombra das arvores seculares, a ouvir o canto dos passarinhos, que lhe suspendem os ninhos nos ramos, a ver correr a meus pes as aguas puras de um regato, para que substituir todos estes bens pelo ruido de um dos bairros mais aristocraticos de Paris? Encerrado em um gabiente seria forcado a trabalhar por conta de algum livreiro que se encarregaria de publicar minhas obras, sem ter outra consolacao senao ver nascer de tempos em tempos uma rosa na janella do meu quarto. Eu perderia aquillo que mais amo--a companhia destas queridas plantas no meio das quaes tenho vivido. " Estas razoes, muito poderosas no espirito de um naturalista, teem prolongado, por uma resolucao voluntaria, um exilio que comecara por um acto de violencia. O Sr. Bonpland vive hoje em S. Borja, ponto o mais povado das antigas missoes do Uruguay, no logar onde elle se estabelecera antes da perseguicao de Francia, e nada parece deve-lo arrancar ao genero de vida que adoptou, e com o qual se mostra satisfeito. Sua robusta constituicao fa-lo supportar com voragem o peso dos annos, e sua viva imaginacao alimenta-lhe a esperanca de poder levar ao cabo grandes projectos que elle medita em seu espirito sempre activo e sempre occupado. " Daqui a um anno ou dous, escrevia elle recentemente a um amigo, poder-me-hei occupar de uma chacara e fazer uma grande plantacao para embelleza-la. Quando minha casa estiver prompta, hei de convidar-vos para passarmos juntos os poucos dias que nos restao. " Estas illusoes sao dignas de inveja. O que ainda o e mais e a amizade que lhe conserva o Sr. de Humboldt, uma das maiores illustracoes deste seculo, que tem legado a historia tantos nomes celebres. Ha um anno o illustre sabio, do meio dos esplendores da corte de Berlim, escrevia a seu antigo companheiro de estudos esta carta cheia de terna e affectuosa estima: " Meu caro e terno amigo!--Ainda que eu tenha bem pouca esperanca de que estas linhas e o livro que as acompanha (a bella traduccan franceza da nova edicao de meus Quadros da Natureza) cheguem as tuas maos, procuro entretanto, ja bem perto do meu octogesimo-quarto anniversario, dar-te um pequeno signal de vida, o que quer dizer de amizade, de affectuosa dedicacao, de vivo reconhecimento. " Sei com grande alegria que tu te conservas n'uma feliz e intelligente actividade. Um Americano que me e desconhecido, o Sr. John Torrey, professor de botanica em New-York, teve a delicadeza de mandar-me um thesouro,-- teu retrato em photographia. Reconheci nelle teus nobres tracos, trabalhados sem duvida pela idade, mas taes como t'os vi em Esmeralda, em Tchuilotepec, e em Malmaison! Deixaste (como por toda parte) agradaveis saudades em Berlim; mostrei teu retrato a muitas pessoas que se interessao pelo teu nome e por teus interessantes trabalhos. " Minha saude mantem-se pela propria assiduidade ao trabalho. O ultimo (4° volume) do Cosmos apparecera neste inverno. Teus importantes manuscriptos botanicos, escriptos durante nossa viagem, achao-se depositados com muito cuidado, e muito completos, no Museu de Historia Natural do Jardim das Plantas, como tua propriedade, da qual podes dispor. Peco-te de joelhos, caro Bonpland, que os deixes em Paris, no Jardim das Plantas, onde teu nome e venerado. E' um monumento de tua immensa actividade. " Ha de sem duvida ter-te affligido muito a morte inesperada de Adriano Jussieu ! " O rei da Prussia nomeou-te, ha cinco annos, cavalheiro da sua ordem real da Aguia Vermelha. " Publicou-se isto nos jornaes, mas a noticia ofcial e a decoracao nao te terao chegado as maos. " Conheco teu cathecismo philosophico, mas acreditamos que em tuas relacoes com o Brasil(se as tens) isto te podia ser util. " Ainda nao voltei a Paris depois de janeiro de 1848. As intimas relacoes que tive com a duqueza de Orleans impedem-me de apparecer nas Tulherias, assim como tambem o ardor que tu me conheces pelas instituicoes livres. " Nunca fui daquelles que acreditarao que te deixarias tentar, meu caro e excellente amigo, pelo aspecto da Europa actual, a deixar um magnifico clima, a vegetacao dos tropicos e a solidao feliz no meio das affeccoes domesticas. " Talvez que estas linhas, que eu confio a um joven medico polaco (de um nome um pouco barbaro, de Chrzemski), que vai a Buenos-Ayres, te possao chegar as maos! Queria ter letras tuas antes de minha morte proxima. " Todo teu de corracao e alma, com o reconhecimento de um terno amigo e fiel companheiro de trabalhos Alexandre Humboldt. " Berlim, 1° de setembro de 1853.--O pobre Arago, quasi cego, acha-se no mais triste estado de saude. " Sei que continuas com louvavel ardor a augmentar tuas immensas colleccoes. " Nem a idade, nem o isolamento, puderao esfriar no Sr. Bonpland o amor pelo estudo e pela contemplacao da natureza. Quando elle se achava no Paraguay, privado da liberdade, sua unica distraccao era herborisar, ajuntar crystalisacoes, petrificacoes e mineraes dos campos que o cercavao. Estas colleccoes, que encheu perto de cinconeta caixas, forao embarcadas a bordo de um navio de guerra e mandadas aos Museus de Paris como um certificado de vida do illustre naturalista. Ha pouco tempo o Sr. Mailleffer, encarregado dos negocios de Franca em Montevideo, recebeu de seu governo ordem de communicar ao Sr. Bonpland uma lista de algumas plantas do Paraguay que a commissao de agricultura julgava proprias a serem introduzidas e aclimatadas na Algeria. O Sr. Bonpland, que se achava accidentalmente naquella cidade, deu conta desta missao da maneira mais louvavel. Nao se contentou com augmentar o numero das plantas, a seus nomes scientificos accrescentou o que ellas teem na lingua guarany, e deu as instruccoes necessarias para sua conservacao e cultura. Durante sua curta estade em Montevideo, aquelle que escreve estas linhas teve a felicidade de tornar a ver e abracar uma vez ainda seu velho amigo o Sr. Bonpland depois de uma separacao de mais de vinte annos; nao diremos que estes annos tenhao passado impunemente sobre sua cabeca; mas foi-nos de grande consolacao ver que elles deixavao poucos signaes de sua passagem. Sao sempre os mesmos tracos: o olhar fino e intelligente prova que o Sr. Bonpland conserva toda a vivacidade de seu espirito, com a bondade e ingenuidade de seu coracao. De Angelis.